De Mourão a Mourão a mesma história
Sob as botas do general Olympio Mourão Filho, que
marchou do IV Exército em Juiz de Fora ao Rio de Janeiro para arregimentar seus
pares e desencadear o golpe, teve início o primeiro lampejo da ditadura que castigou
o País por mais de duas décadas. Um ultraje às liberdades individuais,
lancinante castigo aos perseguidos políticos e à democracia, esse período negro
de nossa história deixou chagas irreparáveis na memória nacional. Mourão – o
conspirador -, de índole belicosa e temperamento irrefreável, era tido e havido
como um comandante fanfarrão às vésperas da aposentadoria, que embora não
levado à sério foi o primeiro a mobilizar tropas e setores militares para a
derrubada da presidência naquele longínquo ano de 1964. No arco de tempo de lá
para cá, a repetir a história como pilhéria, um outro general Mourão, esse
burocrata das finanças em Brasília, também nos derradeiros dias antes de trocar
a farda pelo pijama e seguir à reserva, decidiu soltar os demônios dias atrás
durante uma fala em evento na maçonaria cujo teor deveria servir para, no
mínimo, enquadrá-lo no crime de insubordinação, passível de severa punição. Não
foi o que aconteceu. O Mourão da vez, general de quatro estrelas, que atende
pelo registro de batismo como Antonio Hamilton Martins Mourão e tenta uma
candidatura ao comando do Clube Militar, não mediu palavras e nem foi contido
ao falar em intervenção pelas armas no caso de a Justiça “não solucionar o
problema político”. Alegou contar com o apoio dos “companheiros do Alto Comando
do Exército” que, nas suas palavras, compartilham da mesma ideia. Foi (não há
dúvida) a maior e mais explícita ameaça à ordem constituída desde o fim dos
tempos da tutela armada. Instituições civis e os poderes da República estavam
claramente afrontados. O Judiciário submetido a uma chantagem: ou retirava os
“elementos envolvidos em todos os ilícitos” ou, nos dizeres do general, “nós
teremos que impor isso”. Não existiu margem a interpretações distorcidas sobre
as intenções do oficial que, sem qualquer cerimônia, mandou às favas o
regulamento disciplinar segundo o qual é vetado a militares da ativa emitir
manifestações de cunho político. A tibieza da reação das autoridades
surpreendeu até os mais próximos convivas do Planalto. O Ministro da Defesa,
Raul Jungmann, limitou-se a um pedido de explicações do chefe do general e deu
o caso por encerrado, sem punição ao indisciplinado Mourão. A escalada de
inquietação dos brasileiros – que correram às redes sociais para comentar o
temor da ameaça – só cresceu. O pior ainda estava por vir. Foi o próprio
comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, em programa televisivo,
quem reiterou que não se cogitava punir ou repreender o colega de farda pelo
ato. Ao contrário, Villas Bôas chegou a elogiar o subordinado: “O Mourão é um
grande soldado, uma figura fantástica, um gauchão…”. Deu ainda endosso público
às imprecações lançadas ao afirmar que, pela Constituição, as Forças Armadas
podem ser empregadas sim para garantir a ordem, numa interpretação muito
particular e distorcida do artigo que só aceita tal situação “sob a autoridade
suprema do presidente da República”. O comandante do Exército lançou a senha
para uma espécie de cordão de isolamento em torno de Mourão na caserna. A reportagem
da ISTOÉ levantou as razões. Como relata nesta edição, o próprio Villas Bôas –
além de vários outros generais tão drapejados de medalhas e comendas como ele –
participou de uma reunião sigilosa dias antes que motivou o discurso na
maçonaria. O general Augusto Heleno, que comandou as tropas no Haiti, não
hesitou em dar publicamente aval “irrestrito” às ideias de Mourão que, diga-se
de passagem, é reincidente e fez no passado duras críticas à classe política,
tendo na ocasião perdido o Comando Militar do Sul. Fato recorrente, o flerte
com regimes de exceção e ideias de ultradireita acontecem aqui e alhures em
tempos de crise. A busca de uma alternativa radical, vendida como solução fácil
e eficaz, embute decerto riscos desconhecidos e valores enganosos como o de
imaginar que não há malversações ou desvios de qualquer natureza nesses
sistemas. Nada mais falacioso. Na ditadura, o estrangulamento da informação, a
censura sob diversas formas e o controle violento daqueles que se opõem ou
denunciam o regime, escamoteiam as faltas gritantes cometidas debaixo dos
panos. Sem liberdade e sob a direção das armas a sociedade perde o controle do
próprio destino.