Responsável pelos processos da Operação Lava Jato
na primeira instância, o juiz federal Sérgio Moro concedeu uma entrevista
exclusiva na qual falou sobre os desdobramentos da operação, a reação da classe
política e os efeitos do combate à corrupção.
Entre outros temas, Moro também fala sobre prisões
após condenação em segunda instância, os efeitos das delações premiadas e como
o julgamento do mensalão do PT no Supremo Tribunal Federal influenciou
"decisivamente" a Lava Jato.
Sérgio Moro diz não ter "vocação" para
política e afirma que o foro privilegiado, na opinião dele, deveria ser
reduzido "significativamente".
Leia abaixo a íntegra da entrevista:
Camarotti: Juiz Sergio
Moro, antes de mais nada, muito obrigado por essa entrevista. Eu queria começar
fazendo uma análise. Já são três anos e meio de Lava Jato. Qual é o balanço que
o senhor faz da operação Lava Jato?
Moro: Eu
queria agradecer a oportunidade para falar. A Lava Jato começou, a parte
ostensiva dela, mais de 3 anos atrás. Foi em 17 de maio de 2014. E muita coisa
aconteceu desde então. Muita coisa que era imprevisível no início. E
considerando os casos já julgados hoje nós temos várias condenações criminais, pessoas
que estão cumprindo pena de prisão e pessoas que muitas vezes nós nem
imaginávamos que poderiam responder perante à Justiça pelos seus crimes. Então,
o balanço, nessa perspectiva, é muito positivo. Eu acho que a Lava Jato vem
numa linha no sentido de diminuição da impunidade de crimes praticados por
poderosos no Brasil. E isso é muito positivo.
Camarotti: Tem uma
pesquisa que aponta que percepção do brasileiro é que a corrupção aumentou
nesse período. Como o senhor avalia isso?
Moro: É muito
difícil avaliar essas pesquisas porque a corrupção é uma cifra negra. Então,
nós conhecemos os casos que vão ser descobertos e vão ser muitas vezes julgados
na Justiça. Mas ela pode ser muito maior. Então, talvez essa percepção de que a
corrupção aumentou seja resultado do fato de ela se tornar mais visível. No
entanto, o que por outro lado, também existe uma percepção que apesar das ações
da Justiça, falta muito ainda a ser realizado, principalmente por parte das
nossas lideranças políticas. Talvez isso também tenha favorecido essa percepção
de que, em que pese a ação da Justiça, há muito a ser feito ainda em relação à
corrupção. E ela não tenha diminuído significativamente.
Camarotti: Tem uma
pesquisa que aponta que o brasileiro acaba aceitando até alguma coisa
relacionada à corrupção quando há uma ação concreta, uma contrapartida
política. Isso mostra que o brasileiro ainda precisa ter uma visão mais própria
em relação a essa questão da corrupção. O brasileiro é meio permissivo?
Moro: Tem que
ser compreendido que não existe uma troca compensatória em relação à corrupção
e um bom governo. Um bom governo pode ser competente e honesto. E não existe um
bom governo competente e desonesto. Essas coisas são inconsistentes. Então,
acredito que esse trabalho que vem sendo feito por instituições como a justiça
criminal, polícia, MP, e Judiciário, vai levar a um crescimento da percepção de
que a corrupção é algo que nos deixa para trás, é algo que atrasa o nosso
desenvolvimento, é algo que compromete as nossas liberdades públicas, nossas
liberdades políticas. Nós temos direito a ter um governo honesto. Então, eu
acredito que isso, essa percepção é crescente. E, se alguém ainda tem essa
ideia equivocada, é preciso esclarecer. Não existe necessidade de uma troca
compensatória dessa espécie.
Camarotti: Há, no
Brasil, a percepção de que existe uma Justiça para a população e uma Justiça
para autoridades. Uma questão da impunidade mesmo, que se coloca. Isso acaba um
pouco, pelo menos, é revisto no julgamento do mensalão. Qual a importância do
julgamento do mensalão para a Lava Jato hoje?
Moro: Existe
uma expressão que é conhecida no direito que se chama "rule of law",
que nós podemos, talvez, traduzir para “governo de leis”. E dentro de uma
democracia é muito importante que tenhamos um governo de leis. No sentido de
que as pessoas respondem pelos atos que elas praticam. Sejam as pessoas que se
encontram numa situação mais difícil, mais vulnerável, sejam os poderosos.
Então, essa ideia do governo de leis é que mesmo os governantes, mesmo os
poderosos, mesmo aqueles que têm poder político e econômico devem responder
pelos seus atos perante a Justiça. A ação penal 470, chamada de mensalão, foi
um momento muito importante na história jurídica e talvez política do Brasil.
Porque, pela primeira vez, um tribunal, o STF, com toda a visibilidade que tem,
tomou uma decisão difícil dentro de um processo judicial e condenou pessoas que
ocupavam cargos elevados na administração pública e pessoas poderosas do ponto
de vista econômico. Condenou essas pessoas pela prática de crime de corrupção e
lavagem. Isso teve uma influência muito grande em todo o sistema de Justiça. Na
sociedade, mas especialmente no sistema de Justiça. Porque o juiz afinal de
contas ele age baseado em exemplos e precedentes. Então, o julgamento do STF
certamente influenciou decisivamente a operação Lava Jato. Essa postura mais
rígida do Judiciário em relação a esses crimes de corrupção. É importante
realmente ter essa rigidez. Esses crimes são muito graves e pelo que foi observado
nos casos já julgados, havia um sistema, a corrupção como regra, e precisa
realmente dar um basta nesse tipo de comportamento.
Camarotti: Como o
senhor avalia o tempo e a velocidade dos julgamentos em primeira instancia e o
que a gente vê dentro da própria lava jato no foro especial, como o STF? Por
que essa diferença de tempo?
Moro: Essa é
uma questão muito interessante. O STF, em que pese o mérito dos seus ministros,
ele é um tribunal estruturado principalmente para julgar recursos e questões
constitucionais. Não é um tribunal estruturado para julgar casos concretos. E
por outro lado é um tribunal abarrotado de processos. Mesmo que nós fossemos
considerar essa jurisdição criminal originária, do foro privilegiado, ainda
assim são milhares de processos. Então, é muito difícil o STF dar vazão em um
tempo razoável ainda que os seus ministros se esforcem enormemente nesse
sentido. A grande questão: se nós constatamos que o foro privilegiado não tem
funcionado a contento, se há dificuldades nas instituições de trabalharem
nesses processos, o passo é adotar uma atitude reformista. Precisa realmente
esse foro privilegiado? Ele gera benefícios? Ele vem funcionando a contento?
Pontualmente, funciona. O caso da ação penal 470. Mas vamos lembrar que foram
quase 6 anos até que o caso fosse julgado no STF. Em que pesem todos os méritos
do STF no caso, é um tempo bastante significativo. Então, a meu ver, o que
tinha que ser feito... as nossas lideranças políticas deveriam assumir uma
postura reformista em relação a essa questão do foro privilegiado. Isso está
funcionando como algo que favorece a transparência, a responsabilidade? Ou está
funcionando como uma espécie de escudo contra a responsabilização das pessoas
culpadas? E diante das conclusões em relação a esse tema, tomar a postura
correta. Que, a meu ver, seria diminuir significativamente o foro privilegiado.
Como, aliás, é bandeira de vários ministros do STF.
Camarotti: Hoje
tem muito parlamentar que agora tenta manter o mandato, até deixando o mandato
mais difícil, por exemplo de senador, para deputado federal, governador, para
deputado federal, para ter esse foro especial do STF.
Moro: As
nossas instituições políticas governamentais deveriam estar preocupadas em como
governar o país. Por exemplo, qual é a melhor política econômica, qual é a
melhor política para reduzir a desigualdade, como aumentar as oportunidades
para todas as pessoas. E quando ela é comprometida com essas discussões a
respeito de questão criminal, eu acho que isso impede que o Brasil avance. Não
que essas questões devam ser deixadas de lado, pelo contrário. O uso das
instituições políticas representativas devia tomar as posturas adequadas para
afastar dos seus meios aqueles eventuais agentes públicos envolvidos em casos
de corrupção.
Camarotti: Em 2009,
teve uma operação Castelo de Areia, que as provas foram invalidadas pelo STJ. O
senhor avalia que esse episódio acabou ajudando a Justiça a prender mais para
evitar erros como no passado, da Castelo de Areia?
Moro: Essa é
uma pergunta difícil. Dentro de um processo penal, o resultado normal é o
culpado ser condenado e ir para prisão e o inocente ser absolvido e ser mandado
para casa ou permanecer em casa. Quando se tem algum problema, de questão de invalidade
do processo, de uma prova viciada, normalmente o processo não chega ao
resultado que era o ideal: um julgamento com base na Justiça, segundo a lei. É
claro, os agentes encarregados de investigação de crimes, de perseguição de
crimes e julgamento têm que agir conforme a lei. Não sei se esse caso eu
apontaria como um caso de aprendizado, especificamente. Mas é real o fato de
que os agentes envolvidos na aplicação da lei não podem, a pretexto de
cumpri-la, violá-la. Então, isso é algo fundamental dentro da administração da
Justiça.
Camarotti: No
Congresso Nacional, se percebe claramente um movimento de autopreservação da
classe política e também um movimento para frear iniciativas de combate à
corrupção. Por exemplo, a gente viu na Câmara tendo sido desfigurado aquelas
pedidas de combate à corrupção. O pacote de medidas tendo sido desfigurado.
Como o senhor avalia isso? Isso pode acabar atingindo, medidas legislativas,
operações futuras, de investigação de combate à corrupção?
Moro: Olha,
talvez a maior frustração resultante de todo esse caso seja o fato de que ainda
existem muitos bons agentes políticos, mas por outro lado faltam lideranças
políticas que sobressaiam com um discurso favorável a esse trabalho de
investigação e especialmente com discurso reformista. Disse isso publicamente
várias vezes. Fulcrar o enfrentamento da corrupção unicamente no trabalho da
polícia, do MP e da Justiça não é suficiente. Porque esses crimes são difíceis
de serem descobertos. Uma vez descobertos, esses crimes são difíceis de serem
provados, e muitas vezes, mesmo descobertos e provados, não encontram uma
resposta adequada dentro do sistema de Justiça. Então, diante desse quadro, dos
casos já julgados que revelam que houve um sistema de corrupção, o importante é
que nós tivéssemos lideranças políticas preocupadas com reformas que
aumentassem a eficiência do sistema de Justiça e, por outro lado, diminuíssem
incentivos e oportunidades de casos de corrupção. E sinceramente, com todo o
respeito, o que se vê nesse campo é uma omissão muito grande, uma inércia muito
grande. Agora, sempre se tem a expectativa de que as coisas possam mudar. E
existem bons agentes políticos que eventualmente possam se sobressair com um
discurso mais reformista nessa área.
Camarotti: O
ministro Barroso, do STF, fala que está em curso uma “operação abafa”. Como o
senhor avalia isso? Concorda?
Moro: Sempre
existem aqueles que, vamos dizer assim, viveram desse sistema. E essas pessoas
muitas vezes se sentem assustadas se há uma perspectiva de que o sistema mude.
E há pessoas que vão ter a ousadia de tentar evitar essas transformações no
sistema. Eu diria que aqueles que adotam essa postura de tentar frear os
processos contra a corrupção adotam uma postura vergonhosa. Não há nenhuma
vergonha em combater a corrupção, mas há vergonha naqueles que tentam frear os
trabalhos da Justiça no que se refere ao enfrentamento da corrupção. Não
obstante, nada de muito efetivo foi conseguido por essas pessoas. Eu vejo que
esses trabalhos contra a corrupção ainda contam, que pese sombras de
retrocesso, ainda contam com o apoio esmagador, majoritário, da opinião
pública, da própria imprensa e da sociedade civil organizada. Se percebem, em
diversos nichos dentro da sociedade, um discurso vigoroso, no sentido de: essa
corrupção nos deixa para trás, compromete a nossa economia, compromete a
qualidade da nossa democracia, essa própria frustração que as pessoas
manifestam em relação à democracia não é contra a democracia, em si, mas sim a
verificar que existem pessoas que se aproveitam de posições de poder, não para
agir em benefício de todos, mas para agir em benefício privado. E isso é
extremamente frustrante, mas esse discurso vigoroso contra a corrupção é algo
que se encontra muito forte dentro da sociedade civil organizada.
Camarotti: Há um
movimento, também no Congresso, para rever pelo menos parte do que é a
legislação atual sobre delação premiada. Isso cresce muito com as críticas à
delação da JBS. Qual o risco disso para futuras investigações?
Moro: Existe
aquela frase: ‘o preço para a liberdade é a eterna vigilância’. E a sociedade
civil, a opinião pública, a imprensa deve ficar atenta a esse tipo de
movimentação. A colaboração premiada é basicamente utilizar um criminoso, o que
ele sabe, contra os seus pares. E é um meio importante de investigação, porque
as vezes somente quem sabe dos crimes são os próprios criminosos. E isso é
feito praticamente no mundo inteiro. Pega um contra os demais. O que não
significa que pontualmente não podem ser cometidos alguns equívocos na
realização dessas colaborações. Agora, tomar o aparte pelo todo é algo
extremamente equivocado. E tem que se tomar muito cuidado com algumas propostas
legislativas que eventualmente aparecem por aí, que tenham a finalidade não
especificamente de aprimorar o instituto, mas eliminar o instituto. Uma
proposta que me parece um tanto quanto absurda, por exemplo, é aquela no
sentido de proibir que alguém que se encontra preso possa realizar uma
colaboração premiada. Principalmente porque, para começo de conversa, isso
viola o direito de defesa da pessoa presa. Porque a delação é um meio de a
Justiça encontrar os cúmplices de um criminoso, mas também de uma certa maneira
é um meio de defesa de uma pessoa que quer colaborar para receber benefício da
Justiça.
Camarotti: Porque
há críticas nesse sentido, de que a prisão prolongada... inclusive, há críticas
no próprio STF em relação a isso, do ministro Gilmar que cita as prisões
alongadas de Curitiba. E advogados citam isso como um fator de estímulo à
delação premiada. Como o senhor avalia isso?
Moro: Eu não
faço nenhuma. Não rebato essa crítica de maneira nominal. Essas pessoas
normalmente celebram acordos quando se encontram uma situação processual
difícil. Normalmente quando elas percebem que a Justiça conseguiu reunir provas
significativas contra elas e que a melhor opção de defesa para elas é
colaboração. Isso acontece tanto quanto elas estão soltas quanto presas
preventivamente. E pode acontecer até em casos de pessoas já condenadas
criminalmente. Não existe uma correlação necessária entre a prisão e a
colaboração premiada. Tanto que a absoluta maioria não tenho aqui os números
infelizmente, mas a absoluta maioria dos acordos de colaboração foram feitos
com pessoas que se encontravam em liberdade. A questão da prisão preventiva é
outra situação. Ela é um instrumento excepcional, sim, mas está previsto na
nossa legislação. E ela pode ser utilizada em diversas situações: para proteger
provas, para evitar uma fuga, como tem sido pontualmente utilizada nesses casos
na Justiça. Mas também para proteger a sociedade ou a vítima de novos crimes. E
aqui podemos fazer uma comparação de uma situação que nós vivemos muito no
cinema: casos de serial killers. Você vai prender um antes do final do
julgamento porque não vai esperar que haja uma nova vítima. O mesmo raciocínio
envolve o caso da corrupção sistêmica. O que foi observado é que essas pessoas
praticavam esses crimes de maneira sistemática, reiterada. Daí a necessidade de
se usar um instrumento drástico, a prisão antes do julgamento, para impedir a
prática desses crimes. Para ilustrar, havia uma dessas empreiteiras que tinha
um departamento de propina. Ou seja: não foi um caso único de corrupção isolado
no tempo e espaço, mas foi corrupção sistemática, reiterada, por anos. Era
necessário dar um basta naquela situação. Por outro lado, também, muitas vezes
agentes públicos que também receberam propina não em um caso isolado, mas
vinham recebendo propina por anos, sistematicamente. Pessoas que receberam,
inclusive, propina mesmo enquanto estavam sendo julgadas pelo STF na ação penal
470. Ou seja, o STF, em 2012, discutindo aqueles casos com profundidade, todo
mundo acompanhou, sobre a responsabilidade daquelas pessoas. Enquanto elas,
paralelamente, recebiam dinheiro de propina de outro esquema de corrupção. Se
isso não é causa de prisão preventiva eu, sinceramente, não imagino o que
seja... E se formos observar, também não podemos dizer que ela foi vulgarizada,
somente foi decretada prisão preventiva quando tínhamos provas muito robustas
da reponsabilidade criminal daquelas pessoas. Até porque não queríamos que um
eventual inocente fosse preso indevidamente. E normalmente essas prisões
preventivas se seguiam a um processo rápido, com julgamento em meses, com que o
risco de uma prisão indevida acabou sendo bastante minorado.
Camarotti: Como o
senhor avalia essa questão de prisão em segunda instância? Você está tendo uma
revisão no STF. Agora os ministros estão querendo, inclusive, mudar o voto da
prisão em segunda instância, que foi um divisor de águas, inclusive, na própria
Lava Jato. Como o senhor avalia essa questão e essa possibilidade? Essa crítica
que tem por parte de ministros do STF em relação à prisão em segunda instância?
Moro: Eu acho
que houve uma percepção por parte do STF. Eu não diria baseado exclusivamente
na Lava Jato, mas em vários casos criminais. Mas houve uma percepção no início
de 2016 que a impunidade e a corrupção sistêmica andavam juntas. Não que a
impunidade seja a única das causas da corrupção, mas certamente o fato de esses
graves casos de corrupção não encontrarem uma resposta na justiça acaba
servindo como um estímulo ao comportamento criminoso. Se você tem alguém que
rouba o dinheiro público e nunca nada acontece, a tendência é que esse
comportamento venha a piorar. E o STF, ao meu ver, com essa percepção, proferiu
um julgamento em 2016. E foi um julgamento cujo relator eu acho que precisa,
goza da admiração de todas pessoas, que foi o Teori Zavascki, e o ministro
Teori decidiu naquele caso. Olha, nós temos que mudar o nosso sistema porque
nos casos de processos criminais envolvendo, por exemplo, corrupção, ou crimes
complexos que nunca terminam, gera impunidade. Por outro lado, a prisão depois
de um julgamento em primeira instância, depois de um julgamento em apelação em
2 instância, os riscos de você ter a prisão de um inocente são diminutas. Até
porque nessas fases é que se analisam as provas. Então, podemos adotar o
entendimento que a partir do julgamento em apelação pode já executar a pena. Se
houver um recurso a um tribunal superior, ao STF, por exemplo, e o STF entender
que aquele recurso tem chance de procedência, plausibilidade, tudo bem o STF
mandar suspender o julgamento. Mas a regra anterior, de que se esperava até o
final, apenas favorecia criminosos poderosos, que tinham condição de contratar
advogados habilidosos e que conseguiam manipular o sistema para prevenir uma
efetiva responsabilização. Não faço, aqui, uma censura propriamente aos
advogados. Mas se o sistema tem brechas as brechas serão utilizadas. Então, foi
proferida essa decisão que eu acho que foi muito importante. Foi fundamental
essa mudança permanente.
Camarotti: Há
excesso de delação premiada? Ou seja, vai ser... todo mundo vai ficar sabendo
dos crimes cometidos, todo mundo vai saber quem são os corruptos, mas esses
corruptos em boa parte podem ficar soltos durante um bom tempo ou presos por um
período menor. Ou seja, com muitos benefícios. O senhor acha que há excesso de
delações?
Moro: Eu
pediria a liberdade só para retomar a resposta anterior, que me alonguei. Mas
essa movimentação para eventualmente rever esse precedente, eu espero que não
aconteça. Quero que o STF respeite o precedente que ele estabeleceu em 2016,
até no julgamento até por duas vezes, e acredito que os ministros vão ser
sensíveis a essa percepção de que pese na argumentação a respeito da presunção
de inocência, a execução a partir do segundo grau não significa uma violação
dela. Tanto assim que nós temos países como a França e os Estados Unidos que a
execução da pena se dá no julgamento em primeira instância. E veja que são
países com tradição de respeito aos direitos e humanos e liberal bem maior do
que a nossa. São berços históricos da presunção da inocência. E a presunção de
inocência está essencialmente vinculada à questão da prova, e não a efeito de
recurso. O que importa é você ter prova categórica da responsabilidade criminal
e isso é satisfeito com julgamento em 1ª e 2ª instância.
Camarotti: Há
excesso de delações?
Moro: Essa é
uma boa questão também. Tem que ser compreendido que esse caso não envolve um
único crime. São vários crimes, são dezenas de crimes, são centenas de crimes,
são milhares de crimes. Havia um sistema de corrupção, portanto não é possível
se pegar um único criminoso para desvendar todo o esquema criminoso. Daí a
necessidade muitas vezes de se fazer acordo. Isso é uma prerrogativa do MP. Do
MP fazer o acordo com várias dessas pessoas. O que é importante é discutir
esses acordos para evitar que eles gerem benefícios excessivos a esses
indivíduos. Me parece que os acordos que atualmente estão sendo cogitados ou
realizados são acordos mais sensíveis a essa necessidade de estabelecer
condições mais rigorosas. Há, por exemplo, um profissional da lavagem de
dinheiro que fez um acordo e que foi convencionado nele que ele cumpriria pelo
menos 3 anos de prisão em regime fechado. Então, tem que se pensar esses
acordos para evitar esses benefícios excessivos. mas muitas vezes eles acabam
sendo mesmo necessários para desvendar um esquema criminoso maior ou um
criminoso maior. Então, você faz um acordo com o homem da mala para se chegar
por exemplo a uma autoridade política elevada envolvida naqueles crimes. Eu
acho que é possível justificar acordos com criminosos menores para se chegar a
criminosos maiores.
Camarotti: O
ex-presidente Lula se diz perseguido pelo senhor. Como o senhor reage a isso?
Moro: Sobre o
caso do Lula, é uma pergunta complicada para eu responder porque ele já foi
condenado num caso, o caso se encontra em apelação no TRF-4, e é um tribunal
composto por magistrados absolutamente sérios, que vão tomar a melhor decisão
no caso, confirmando ou não a condenação... e por outro lado ele tem casos
pendentes aqui na vara. Então, eu não me sinto confortável em falar sobre o
caso dele, já que existem casos pendentes que ainda vão demandar julgamentos da
minha parte.
Camarotti: Os
advogados dele dizem que o senhor condenou o ex-presidente sem provas. Como o
senhor responde a isso?
Moro: Olha,
eu proferi uma sentença condenatória e tudo o que eu pensava sobre aquele caso,
tudo o que eu tinha a respeito das provas está naquela sentença. Então, aquela
é a resposta que eu dei à acusação criminal. E parece que ali eu fiz todo o meu
raciocínio do porque eu tenha emitido um juízo condenatório. Então, eu não vejo
necessidade de me manifestar publicamente sobre esse julgamento quando o que eu
tinha a dizer está na sentença.
Camarotti: Também
há críticas à participação do senhor na pré-estreia de um filme sobre a Lava
Jato. As críticas dizem que o filme tinha um viés “antipetista”. O senhor
avalia que um juiz deveria ter ido para esse evento?
Moro: É uma
boa pergunta. Na verdade, eu não fiz o filme, então não tenho controle sobre o
conteúdo. Foi feito um filme sobre a Lava Jato e eu fui convidado, então fui
como um espectador qualquer. Isso não significa que eu apoie ou não apoie o
conteúdo do filme. Eu só fui na condição e espectador e não juiz. A meu ver,
isso não tem qualquer relação com os julgamentos que eu vou realizar no
processo. Eu sou um espectador passivo naquele filme. Confesso até que eu nem
comi pipoca naquele dia, em que pese a foto, uma foto que foi tirada sugerisse
isso, mas eu nem comi pipoca.
Camarotti: Em outro
momento, o senhor apareceu numa foto num momento descontraído com o senador
Aécio Neves. Naquela época, ele não era réu, mas já era líder de oposição ao
PT. O principal líder. O senhor acha que foi um erro essa foto?
Moro: Olha,
eu fui num evento público que estava sendo realizado pela IstoÉ e houve uma
certa disposição das cadeiras. E ocasionalmente eu fiquei ao lado do senador e
nós conversamos normalmente. O senador é uma pessoa espirituosa e eventualmente
tem, ali, os seus momentos jocosos. Mas isso não significa nada. Um porque eu
não tenho nenhum processo dele sob a minha responsabilidade, ele tem foro
privilegiado. E isso não significa nenhum juízo, digamos assim, aprovação a
eventuais condutas ilícitas do senador em questão. Então, a foto sugere mais do
que ela de fato significa. Na verdade, ela não significa nada.
Camarotti: Também
há reclamações dos acusados, das defesas dos acusados, de que não tem sido
assegurado o direito de produção de provas... como o senhor responde a isso?
Moro: Esses
julgamentos têm sido realizados com absoluta transparência e publicidade. As
pessoas que analisarem esses casos podem constatar porque eventuais sentenças
são condenatórias ou eventuais sentenças são absolvitórias. Então, vamos
colocar um exemplo. Temos hoje 4 ex-diretores da Petrobras condenados por
corrupção e lavagem de dinheiro. E alguns deles por associação criminosa. Todos
os 4 tinham contas secretas no exterior com saldos de milhões de euros, com
milhões de dólares, certo. Num processo criminal, isso é algo que acontece em
qualquer vara, o juiz tem uma responsabilidade de supervisionar a produção de
provas das partes. E a lei estabelece que o juiz pode eventualmente indeferir
provas que sejam requeridas pelas partes quando entender que elas não sejam
necessárias para o processo. Isso é algo que acontece em qualquer vara, é muito
comum. O que acontece é que, eventualmente, nesses casos, o juiz, eu, no caso,
profere alguma decisão indeferindo prova. A parte que que teve a prova
indeferida tenta supervalorizar. ‘Ah, houve cerceamento de defesa’, mas, quando
nós vamos ver, a prova normalmente é absolutamente desnecessária. Muitas vezes
as pessoas querem ouvir testemunhas no exterior que nada sabem sobre os fatos,
é uma maneira de ganhar tempo. E depois reclamar de longas prisões preventivas.
Isso é muito comum. Não tem nada de não usual dentro dos processos criminais.
Camarotti: No
futuro, o senhor pensa em entrar na política?
Moro: Não
existe essa perspectiva. Como eu disse, acho que a política é importante.
Democracia se faz com política, ela nos dá a vantagem de trocar nossos
representantes, nossos governantes sem derramamento de sangue. As pessoas têm
que exercer seu direito de voto com sabedoria. E pensar em governantes que
sejam competentes, mas também honestos, as duas coisas a meu ver caminham
juntas. Mas não tenho essa vocação. É uma questão simplesmente de vocação.
Poderia? Poderia, eventualmente. Não existe nenhum empecilho normativo. Mas a
minha opção de vocação é outra. Eu sou um juiz e pretendo permanecer como juiz.
Camarotti: O que o
senhor espera pós-Lava Jato? O senhor fala ali de uma fase já avançada da Lava
Jato. O senhor tem planos?
Moro: Olha,
essa é uma questão bastante importante porque nós temos no Brasil aquela
percepção, influenciados talvez por nossa herança portuguesa, latina, não sei,
de que existe um momento de redenção nacional. E pode vir um “Dom Sebastião” e
resolver todos os problemas. Muitas vezes isso pode ser identificado com a
personificação de alguém, mas muitas vezes pode ser uma personificação, por
exemplo, com a Operação Lava Jato. As pessoas muitas vezes têm uma ideia que a
operação Lava Jato vai acabar com a corrupção. Isso não vai acontecer.
Inaugurada talvez de uma maneira mais incisiva, mas antes havia casos assim,
inaugurada mais incisiva com a ação penal 470. A Lava Jato tem começo, meio e
fim. Vai acabar e espero que ela acabe bem. Mas novos casos de corrupção
certamente vão surgir. E que vão exigir novos desafios por parte das instituições
brasileiras. O que é importante é aproveitar esse momento para que pudéssemos
reduzir a corrupção a níveis mais toleráveis. Tolerável é uma palavra
complicada porque a corrupção nunca é tolerável. Mas não podemos ter a ilusão
de que vamos eliminá-la por completo. Agora, esse quadro de corrupção como
sistema, isso realmente tem que ser suprimido. O que é importante então que nós
tenhamos esse processo efetivo e nós nos preocupemos com o futuro. Nós tenhamos
mais processos efetivos no futuro, mas também que nós adotemos políticas
públicas que reduzem oportunidades e incentivos à corrupção. Por exemplo, a
raiz dos crimes havidos na Petrobras consiste no loteamento político de cargos
dentro da administração pública no caso indireto. É esse loteamento político de
cargos públicos, algo que existe faz tempo no Brasil. Do governo anterior,
talvez dos governos anteriores, e é algo que permanece. Isso foi uma das
raízes, umas das causas. Nós não vamos fazer nada a respeito? Será que nossas
lideranças políticas não estão falhando a esse respeito? Eu imagino que
qualquer governante que tenha a oportunidade de utilizar cargos públicos para
ganhar poder político vai ser tentado utilizá-los. Afinal de contas ele quer
realizar suas políticas públicas e muitas vezes precisa desse apoio. Agora, a
postura correta do governante era como isso é uma fonte de distorção, como isso
é uma fonte possível de corrupção, é a diminuição dessa prática corriqueira em
tempo de loteamento político, por isso que eu sempre digo: é preciso ter mais
do que processo judicial contra a corrupção. Precisa ter uma atitude mais ampla
por parte das nossas lideranças políticas para que essas situações não se
repitam. Imagina a frustração com todo o desgaste que houve nessa chamada
Operação Lava Jato com os custos desses processos, com a galvanização da
opinião pública. Que nós passemos por isso daqui a dez anos novamente, não como
Lava Jato mas como um outro processo. Então nós temos que nos preocupar
exatamente com diminuição de incentivos e oportunidades a corrupção. E não se
faz por processos criminais, embora eles sejam importantes, eles não são
suficientes. Isso é responsabilidade de nossos representantes eleitos, e nesse
ponto a inércia é muito grande.